Aprender e ensinar


A mãe dizia que ele era criança de ficar em casa, não de ir à escola. Mas Josivaldo se imaginava dentro de uma poça de giz de cera...
Texto de Nathália Coelho, publicado na edição de agosto da Revista Meiaum.
Eram seis da manhã. A luz do sol entrava pelas frestas do barraco de madeirite e pairava sobre o colchão onde cinco crianças dormiam. A mãe do rebento esquentava água no fogão. Café preparado com a borra de ontem, que servia para hoje. O barulho de pássaros, o ar morno e o brilho do dia acordaram o primogênito Josivaldo. Mesmo com olhos abertos, não conseguiu enxergar o barraco, a mãe, o café, os irmãos. Via apenas uma imensidão de branco e vultos. Acostumara-se. Há dez anos era assim, a cada ano um pouco mais. O menino, que morava no assentamento perto de Brazlândia, nasceu com catarata e pouco enxergava. Todo dia ouvia a mãe acordar os irmãos menores, alimentá-los quando havia algo para comer e caminhar 2 km até a BR para pegar o coletivo que os levava à esco - la. Josivaldo só ia até a rodovia. Não se importava. Afinal, a mãe dizia que ele era criança de ficar em casa. Não tinha direito a estudar. Ela também não estudou. Não sabia ler nem escrever. Havia engravidado cedo. Aos 29, cinco crias.
Ele sentava na cama, ouvia o chiado da TV, os resmungos do pai e da mãe. “Não temos dinheiro.” “Falta comida.” “Filhos dão trabalho.” Mãe reclama do pai, que bebe demais. Pai reclama que a mãe não faz nada em casa. Ambos se agridem verbalmente. O menino ouve palavras feias. Murros. Pontapés. Choro. O ciclo da convivência familiar marcado pela pobreza.
De vez em quando o garoto dava uma volta na vizinhança feita de barracos, terra, moscas e cachorros sarnentos brincando com as crianças vestidas só de calcinha ou cueca nadando na lama. Lixo espalhado. Um odor ocre e morno. Sentado ali no chão Josivaldo ficava até a volta dos irmãos. Na chegada, pulava logo na mochila. Apalpava os cadernos, pegava as canetas e se arriscava.
– Guarda essas coisas. Você nem vê.
É, ele nem via.
– E o que significa ver, mesmo?
– soltava fazendo cara feia.
Os dias se passavam sem novidade. Até que chegou aquela segunda de janeiro. Acordou, ouviu barulhos, sentiu a luz, caminhou até a BR com a mãe e os irmãos, mas não parou na rodovia. Todos pegaram o ônibus.
– Pra onde a gente vai?
– Matriculá de novo os menino.
O ônibus seguiu até Taguatinga. Solavancos, paisagens vistas sob a ótica da sensação das cores. Não pensava em nada. Josivaldo quase caiu com o arranque do motorista. Andaram três quadras até a escola. Um cheiro de giz de cera invadiu o nariz do menino. Ele sorriu e lembrou-se do dia em que o irmão mais novo levou um para casa. E ele se imaginou dentro de uma poça gigante de giz de cera.
– Todas? – o questionamento da secretária à fala da mãe despertou Josivaldo.
– Não. Menos esse aqui – segurou a mão do garoto. – Esse aqui é cego. Não tem jeito de estudá.
– Tem sim, senhora. Ele nunca estudou?
– Não.
– Quantos anos ele tem?
– Dez ano.
– A senhora me traga uma cópia dos documentos dele. Este ano ele vai ser incluído em uma turma.
A família voltou pra casa. Josivaldo não entendeu muito que a voz disse, mas depois a mãe ia dizer. Os dias voltaram à normalidade.
***
A quilômetros dali, Joana despertava de um sono profundo. Era o penúltimo dia de férias. A profissão que amava e lhe dava sustento havia causado ao longo de vinte e cinco anos uma fadiga mental. Tinha desejo de se aposentar. Lidar com crianças sempre foi sua vocação e amava alfabetizar. Mas neste ano queria pelo menos mais duas semanas de recesso. Levantou da cama e foi até a cozinha fazer um café. Os filhos já crescidos dormiam tranquilamente e bem agasalhados. O telefone tocou. Era a mãe, que morava em Minas.
Conversaram por dez minutos. Joana se queixou da volta às aulas. A mãe a encorajou.
– É sua profissão, minha filha.
À tarde, teve um encontro com os primos. Henrique estava lá. Toda vez que o via, ouvia atrocidades.
– Joana, você tem potencial pra mais.
– Eu gosto do que faço.
– Você não tem medo de ser atacada por um aluno?
Não dava ouvidos. Gente pequena de mente pequena. Não conseguia pensar além do seu mundo de riquezas e egoísmo. Gente com essa visão só poderia achar que a Secretaria de Educação do DF era um antro de problemas. E de fato era. Sistema falho, estrutura precária. Mas havia professores bons. Era superficial julgar o todo sem se aprofundar. Joana se chateava, mas seguia em frente.
O fim de semana passou rápido. A segunda e terça de coordenação também. Na quarta, recebeu dez crianças. Apresentou- se, cantou a música de boas-vindas, mostrou o calendário, deu bronca e beijos. Tímidos, os alunos olhavam a professora desconfiados. Um deles ouvia a voz de Joana com maior carinho. Sentia mais que os outros os passos pela sala, o barulho do riscar do canetão no quadro, os gritos dos coleguinhas. No primeiro dia não conversou com ninguém. Ficou quietinho. Dentro de si era tudo novidade e alegria.
– E quem é você nesse cantinho aí? – falou Joana olhando para o menino.
Ele se encolheu. Não a viu. Mas sentiu uma onda de olhares virando-se para ele.
– Josivaldo! Levanta a cabeça, olha pra tia. Tudo bem?
Sem resposta. Um sorriso! A professora entendeu.
As horas seguiram, o sinal bateu. O irmão buscou Josivaldo. Pegaram o ônibus, chegaram ao assentamento. O menino parecia aéreo. Só tinha um pensamento: a escola e a professora.
***
Joana arrumou a sala, pegou a bolsa e dirigiu até sua residência. A cabeça latejava de dor. Rezava para que o ano terminasse logo. Mas, mesmo com as adversidades, imaginou o menino de dez anos que agora estava em suas mãos. Nunca estudou. Teria de conviver com crianças menores. Era mais velho e tinha problemas com a visão. Com certeza teria dificuldades em aprender. Sentiu que não podia desanimar. Ele precisava dela.
Passou um mês. Carnaval! Josivaldo participou do primeiro baile de sua vida. De máscara colorida, ele ouvia e sentia os alunos cantando e dançando marchinhas.
– Vem, Josivaldo! Vamos dançar com a tia! – Joana pegou o garoto e começou a sacudir o quadril ao lado dele. Uma máquina fotográfica registrou o momento. Ele mexeu o corpo, balançou a cabeça, brincou com as fitas. Bateu palmas.
Depois, não entendeu por que tinha que passar quatro dias sem ir à escola.
– Achei que nunca mais ia voltar, tia! – foi o que disse ao retornar.
Aos poucos Josivaldo sentia-se à vontade. Havia dias em que chegava pura sujeira à sala. Não aprendeu a se limpar quando ia ao banheiro. No barraco onde morava nem tinha um. Os alunos reclamavam do odor. Joana brincava de descobrir quem tinha soltado um pum, mesmo sabendo que o cheiro vinha do menino. Em seguida segurava em sua mão, levava-o até o chuveiro e lhe dava banho. Trazia roupas do filho mais novo para ele. Sabia que uma hora ou outra ia precisar. Josivaldo perguntava se era um presente. Joana assentia com a cabeça. Os dois sorriam.
Em maio os professores entraram em greve. Joana teve de ceder. Ficou uma semana apenas. Além do salário, pensava nas crianças. Estava no meio do alfabeto. Elas ficariam perdidas. Como será que Josivaldo estava? Ligou para a escola e avisou que a partir de segunda estaria de volta.
As crianças chegaram, mas Josivaldo não. Um, dois, três, quatro, cinco dias e nada. A professora ligou para o celular que constava em sua ficha. A mãe disse que o menino estava doente de gripe. Joana falou da importância de levá-lo à escola. Josivaldo estava evoluindo. Já sabia as formas, identificava as letras de seu nome quando tocava nelas. Sabia a diferença de sabores, distinguia cheiros. Estava aprendendo sobre o corpo humano. A mãe falou que na próxima semana ele ia. A professora aceitou, mas o menino não foi. Faltou mais uma semana. Os irmãos também estavam ausentes. Ela decidiu ir até a casa dele.
Dirigiu por quarenta minutos. Na beira da estrada avistou o local. Caminhou sob os olhares estranhos. A comunidade não a conhecia. Perguntou pela mãe de Josivaldo. Contou mais ou menos a história. Disse sobre as cinco crianças, deu as características gerais dos meninos e da mulher. Uma senhora apontou à esquerda. Mandou seguir direto. Lá dentro, uma bagunça sem fim. Panelas e roupas sujas misturadas. Num canto, um fogão encardido pelo tempo. No outro, uma estante se desmontando com alimentos e papelões amontoados. Ela chamou pelos moradores. Ninguém respondeu. Saiu novamente. De repente sentiu um abraço apertado nas pernas. Era Josivaldo.
– Tia Joana. Tia Joana – o menino repetia sem parar. Joana chorou e o abraçou de volta. Em seguida vieram os outros quatro, que grudaram na perna da professora.
A vizinha contou o fato. Na noite de sábado que sucedeu à ligação de Joana para a mãe, o casal brigou feio. Ele estava bêbado e tentou abusar dos filhos. A mãe partiu pra cima com uma faca. A faca entrou em sua cintura, depois que o marido conseguiu driblá-la. A mulher desfaleceu na frente dos garotos. Tentaram secar o sangue. O homem fugiu. Josivaldo não entendeu nada. Via vultos. O ambiente escureceu. Chamou a mãe, que não respondeu. Choro. Uma amiga da família chegou de supetão e chamou a ambulância. A mulher foi levada às pressas para o Hospital de Base. Foi operada e permanecia lá. A mesma amiga dando comida e abrigo aos meninos. Passavam o dia perambulando pelo assentamento e não iam para a escola. Josivaldo seguia a antiga rotina de ficar sentado na porta de casa. A diferença era que agora tinha cadernos e giz de cera. O pai foi encontrado pela polícia três dias depois. Foi liberado em seguida. Não configurou flagrante. Não o viram mais.
Joana decidiu levá-los daquele lugar. Passou na delegacia. Descobriu que havia um pedido de prisão preventiva para o homem. E que logo ele estaria preso. Foi até o hospital. A mãe estava se recuperando. Ficou feliz em ver as crianças.
– Agora eu sei por que Josivaldo só ficava falando da senhora.
Ficou com eles até a mãe receber alta. Não demorou muito. Joana conseguiu um trabalho de diarista para a mulher na casa da irmã. Dois meses depois, ela alugou uma casinha em Ceilândia. A vida melhorava. Até decidiu se matricular no supletivo. Josivaldo fez amigos, brincava de bola, pulava corda. Era atendido por uma especialista e começou um tratamento de visão. O ano acabou. Na festinha de encerramento, o menino deixou um bilhete no bolso de Joana antes de ir embora. Em casa, ela o leu e se emocionou. O texto não tinha sua letra, só a assinatura: “Professora, obrigada por me ensinar a ver. Eu gostaria de te chamar de mãe. Josivaldo”.
Joana fechou os olhos. Reviveu os momentos daquele ano e se arrependeu de ter começado sem querer começar. Arrependeu-se do cansaço e das reclamações da vida. Decidiu que no ano seguinte trabalharia como no início da carreira, se conseguisse, é claro. Pelo menos não focaria o cansaço e sim as novidades. As crianças precisavam dela e, sobretudo ela precisava dos pequeninos. Por meio de um garotinho cego, aprendeu a ver a vida pintada com as cores de giz de cera.

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