Flores e cores


    Eram tardes floridas de janeiro. A adolescência doce enxergava a vida pelos olhos de uma ingenuidade multicor. Passavam-se os dias. Ela ainda acreditava em contos de fada e criava os seus. Devaneava. Era sonhadora. Queria conquistar o mundo. Fazia planos, mas sabia viver um dia de cada vez. Ainda não conhecia a tal da ansiedade. Era livre como a juventude prescreveu.
    Amava tudo e a todos, principalmente os livros. E pelas letras e palavras viajava imaginando o caminho. Vivia cada obra literária em profundidade. Não participava de debates de leitura, mas debatia consigo mesmo. Ia atrás, buscava na internet sobre o assunto e tomava aquilo como mantra.
    Foi assim que um dia se apaixonou por Leonardo da Vinci. Como não tinha Twitter, postava as citações do inventor nas janelas do quarto. Eram todas enfeitadas com giz de cera. As fotos estavam publicadas nas portas do guarda roupa. Sonhava em viajar pela França. Dormia e acordava pensando no Louvre. Começou a fazer francês. E então espalhou imagens dos monumentos que um dia iria conhecer na cabeceira da cama.
    A cama, por sua vez, tinha a colcha rosa. E várias pelúcias sobre ela. Coelhos, cachorrinhos, ursos mesmo. Um casal de bonecos de louça. Mantinha-os ali, cheio de cores. No muro de sua casa decidiu pintar desenhos infantis. Eram eles que povoavam seu imaginário. Com a ajuda mãe, transformou o paredão cinza em belos jardins, com flores sorrindo, a pipa brincando com os raios de sol. Um caracol gigante ficava ao lado da menina com rosto de smile que segurava nas mãos - de quatro dedos - do menino de boné para trás. Fez graminhas, uma estradinha na floresta que levava à casa de doces. Criou tudo usando tinta guache. 
   Dividia seu tempo entre as músicas antigas e as da moda. Entretanto gostava mesmo era da primeira opção. Pouco entendia a letra, mas cantava, ao lado de uma amiga, de um modo extremamente animado. Na escola, era a melhor aluna da classe. Seus amigos eram verdadeiros. Amava estar ao lado dos tios. Chorava pelas amizades perdidas entre os primos.   Era intensa, mas uma intensidade ainda revestida pela imaturidade natural da adolescência.
  Se contentava se fazia sol ou se chovia. O tempo passava desapercebido porque não se preocupava com ele. Aceitava as roupas do dia e vivia cada momento. Porém, tinha prazer especial com o frio. O clima era dado aos filmes, travesseiro, coberta e colchão no chão da sala. E sozinha ou acompanhada, viajava pelas telas da ficção. Poucas eram suas responsabilidades. Desconhecia o mercado de trabalho. Ainda tinha no olhar a ilusão da profissão que escolheu exercer. Queria um príncipe, um castelo, cabelos longos, poesia declamada na janela. Abraçava o mundo sem conhecê-lo.
  Um belo dia, se viu crescida, ansiosa, com os pés firmes no chão. As lentes dos óculos passaram a enxergar ao redor com linhas firmes, sem o traçado de um lápis de cor. Descobriu que os príncipes eram feitos de carne e osso e que poderiam demorar a vir, ou nunca apareceriam... O trabalho era árduo, mas gratificante para quem luta. E para se ter um castelo, era preciso pagar. E para se ter o sossego, era preciso trabalhar. Para alcançar o chão firme na carreira, eram precisos longos anos de experiência. E eram para os falsos, dissimulados, frios, egoístas e invejosos que deveria mostrar-se amável. Assim, de repente, descobriu que nem tudo era flores e cores. A vida podia ser cinza de certo. 
   Então recordou dos dias claros de janeiro. Percebeu que, para carregar os fardos da vida, deveria ter a leveza despretensiosa que já conhecia, mas esqueceu-se com o passar dos anos. Cores e flores também existiam fora dos desenhos, eram verdadeiras. E viu o sol por entre o concreto. E viu um broto saindo do asfalto. E viu, da janela do ônibus, um agricultor cuidando da plantação em plena via marginal. E entendeu as letras das músicas que costumava cantar porque pôde vivê-las, de fato.
    Enfim, compreendeu que para alcançar a plenitude e preencher o vazio da alma deveria ter os olhos de uma criança, em corpo de adulto, para poder pintar, quando precisasse, o cinza que lhe aparecia pela estrada. (...)

Comentários

  1. Autobiográfico?
    O segredo fica entre nós...
    beijos

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas