Efêmero e autobiográfico

Meu avô João e eu. (1990)
Perdas deixam vazios. Desmoronam lacunas da existência, fazem sumir a linearidade dos dias. Os estímulos não se completam. O corpo não se entende com a cabeça. O coração fica pairando sobre as feridas abertas. O pensamento é envolto no medo do dia seguinte. Há vulnerabilidade no jeito humano de ser. Afinal, de repente uma ruína aparece. As noites ficam mais longas. O sono é leve e contraditoriamente profundo. Isso porque é mais fácil dormir do que encarar a manhã, ser banhada pelo sol quando tudo se resume em nuvens nubladas dentro da gente. Definitivamente a cama se torna melhor amiga. E não se sente culpada por isso. 

Perdas de alguém deixam vazios maiores. E cada vez maiores dependendo da dose de amor envolvida. E dependendo da dose de amor envolvida por aqueles que estão com vazios escancarados, nosso vazio cresce também. É como se acordássemos à beira de um abismo tendo de transpassá-lo sozinho. É como uma garrafa que estava cheia de água no deserto e, por uma queda súbita, o líquido derramasse todo na areia quente. Essa é a sensação. Garganta seca. Chão desmoronado aos pés. 

Perdas deixam vazios por si só. E quando a perda vem num dia de celebração universal de passagem do ano, tudo é mais sufocante. Enquanto todos festejam, o recolhimento da dor explode o interior. Sim. Vazios provocados pela ausência eterna precisam de tempo para se preencherem novamente. Mudanças bruscas no cotidiano afetam lá dentro.  Mexem com a gaveta de memórias. De repente ela fica mais cheia do que consegue suportar. A vivência de ontem é a lembrança do hoje. Os risos, os cuidados, as peculiaridades, o jeito humano de demonstrar carinho para com os seus. Tudo é recordação. 

Perdas precisam chamar o tempo de amigo. Deve estar ao seu lado e meditar suas demoras. As perdas querem o tempo para que Deus e a saudade amena possa entrar no lugar daquele que se foi. E nos fazer inteiros de novo, de uma forma nunca igual, mas preenchidos de novo. E devemos seguir insistindo, lutando, confiando, prevendo o azul do céu a se firmar em nosso horizonte, mesmo que seja difícil tocar os dias sem parar para dar vazão à cura. 

Perdas se preenchem. Tanto de lá e de cá, de fato. Algum dia. Não sabemos quando. O mantra é: que ambos aceitem a partida, e que transbordem em Deus para que não haja questionamentos quanto à compreensão. Que a alegria volte a brilhar. E a certeza da vida não apague a sua chama. Afinal, as perdas são passagens. Apenas.

Por minha família, por mim.
Por nosso vovô, pai João, "o mestre".
Um mês. 
(...) 




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