O silêncio do jaleco

- Profissão?
- Jornalista.
- Eu também sou jornalista, sabia? Vai lendo esses números aqui pra mim.
- Uai, é mesmo!? Um médico jornalista eu nunca vi! Que legal. 7. 8. 54. 21.
- Tá ótimo, chega. Me formei em 71 pela Universidade de Brasília. Agora vira seu braço esquerdo pra medir a pressão.
- Mas o senhor não quis atuar na profissão?
- Fiquei seis meses, na Tribuna da Bahia. Época de ditadura não era fácil não, sabe! Levanta. Qual seu grau?
- Imagino. 3,5 de miopia olho esquerdo e meio no direito.
- Depois eu comecei a medicina e não deu mais tempo. Mas eu lembro da minha formatura. A última no Congresso Nacional. Sabe quem foi a paraninfa? Lê aquelas letrinhas pra mim.
- Quem!? T. F. U. P. agora o senhor diminuiu...
- Tá ótimo. Foi a Marília Pera!
- Olha só! Deve ter sido emocionante.
- Foi muito. Agora Nathália, termina de preencher o questionário e devolve na recepção.
- Ok, tudo bem!
- Foi muito bom te conhecer, menina.
- Igualmente!
- Não esquece a bolsa, quer dizer. Só se tiver dinheiro!
Sorrio.

Talvez minha profissão tenha despertado memórias antigas no Dr  José, já idoso, mas saudoso ao contar do seu passado. Eu fico imaginando o silenciamento por trás do abandono de um ofício tão difícil de ser exercido em épocas de censura. Eu fico pensando nas lacunas da história que o levaram a essa idade à realização de testes psicotécnicos, quando na juventude algum ímpeto de coragem o fez escolher primeiro o jornalismo. Talvez, se não optasse pela segunda opção não estivesse aqui para me fazer pensar.  As pessoas são histórias. É um universo. E isso é caro, é sagrado.

E a bolsa, seu José, está vazia. Dessa parte o senhor se livrou.

Comentários

Postagens mais visitadas