A sala de vidro da chácara

Das lembranças da infância.

     De lá de dentro, via-se a mistura de tons de verde da Chácara. Observavam-se também as duas piscinas, o extenso milharal, o pomar atrás da Capelinha de Nossa Senhora Consolata, cuja proprietária, minha tia Junice, era devota. No canto esquerdo, um pequeno jardim cercado folhas amareladas e a ducha de onde caía a água com poder de lavar a alma e restabelecer as energias. Os meus olhos de criança enxergavam tudo em lentes de miopia. Eu não sabia como e nem podia entender, mas aquele cenário representava uma profunda paz de espírito.
    Tudo era visto em reflexo da sala de vidro. Um espaço amplo, decorado com móveis rústicos e almofadas floridas em cores quentes. Nas paredes, quadros vivos de xaxim com flores vermelhas. As árvores davam uma sombra boa. E tudo era festa de criança. Alegria à toa. O pé de mamonas virava fábrica bélica para brincadeiras entre os primos. A mamona-bala voava para todos os cantos. Se corríamos para perto da casa do caseiro, deitávamos de propósito de lama. O biquíne rosa da Minnie ficava marrom. Uma passada no curral para os meninos da cidade verem de perto uma vaca leiteira.
    - Eu tenho uma vaca na Bahia. - dizia o Pedro.
    E eu custava imaginar como ele ia trazer essa vaca de ônibus até a sua casa. Mais de dois dias de viagem!
   Os risos corriam juntos com a vontade de nadar na piscina. Pulávamos até conseguir dar uma "de ponta" perfeita. Depois de muitas barrigadas seguidas. Mergulhos, apostas, competições de natação, nado sincronizado e até uma rede improvisada de vôlei. Não havia preocupação, nem pensamentos no futuro. O futuro era o que faríamos no dia seguinte, e no seguinte, até acabar as férias. A amizade prevalecia, e, mesmo com gostos diferentes, algumas briguinhas e ciúmes, estávamos juntos em família.
   A noite caía e dormíamos todos na sala de vidro. Os colchões eram jogados no chão, e as mães (também tias) colocavam com carinho os lençois antigos, mas bem passados e limpos para que pudéssemos deitar. Os travesseiros eram um de cada jeito e a coberta também, quando não trazíamos de casa. Duas redes eram penduradas próximos aos xaxins, e brincávamos de balançar até o sono se aproximar.
    A visão noturna sobre os janelões da sala era sombria porque escuridão, para uma criança, cresce de proporção. E aos meus olhos infantis, a cena denotava o medo e a solidão. Ficar sozinha sem meus pais. Pedro ainda nos assustava apontando para o extenso milharal. De lá, segundo ele, sairiam extra terrestres em uma nave espacial que ia nos levar para bem longe dali. Dava vontade de ir ficar com a minha mãe. Mas permanecia, afinal, lá dentro de mim acreditava que "ETs" não existiam. 
     Ainda tinham meu irmão e minha prima, crianças novinhas, nos seus dois e três anos, que espoletavam e adoravam ficar no meio dos mais velhos. As coisas eram simples, e os conflitos amenos em si mesmo. As responsabilidades minimizadas e a vontade de viver cada dia mais forte. Não havia problema que tirasse a alegria dos rostinhos diante daquela imensidão de verde. E para quem não tinha condições de ir à praia, a piscina estava de bom tamanho. Afinal, era compartilhada com os amores de família.
      A sala de vidro da chácara da Tia Nice era a porta de entrada para o diferente do vivido no dia-a-dia. Talvez o motivo pelo qual gostássemos tanto de ficar lá. Foi parte indiscutível da infância das meninas e meninos da família Coelho e Ramalho. Hoje, a sala de vidro permanece intacta, embora com marcas do tempo. Ainda a visitamos de vez em quando. Mas as crianças daquela época vivem apenas em nossos corações. Nós, os primos adultos marcados pelas experiências de viver a vida com seu vai-e-vem, talvez não consigamos enxergar mais com os "olhos de miopia" a paisagem que se desenrola a nossa frente.
   Contudo, a recordação doce ficou na alma. O gosto da infância bem vivida também. Lembranças da sala de vidro da chácara. Vidros inteiros, transparentes, sem cacos ou quebras interruptas do encantamento de ser pequenino. 

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