Cheiros - Parte 2: Tangerina.
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Sobre a mesa do café, há também um suco de saquinho de tangerina em uma jarra, já pela metade. É cheiro de lancheira escolar. É lembrança vívida da infância. De repente, estou correndo num amplo corredor de uma escola com azulejos brancos. Devo ter no máximo seis aninhos de idade. Carrego em minhas mãos uma "cabeça de Mônica" e puxo uma mochila rosa de rodinhas. Muitas crianças correm ao me redor. Todas estão vestidas com o uniforme: shorts e saias verde escuro e camiseta bege com a logo do colégio. Meus cabelos são grandes e lisos, estão amarrados em rabo de cavalo. Cansada, paro de correr e começo a caminhar para a sala. No caminho observo, à minha esquerda, um parquinho acimentado com brinquedos de ferro coloridos. Dá vontade de recreio! Mas é início da tarde, e, mesmo assim, estou contente porque adoro estudar. Entro na sala e penduro minha "cabeça de Mônica" na arara de lancheiras. A professora tem cabelos encaracolados em tom loiro e um sorriso contagiante. Estou sentada ao lado da minha amiga Érica. A mesinha é em tons brandos de azul. Meu caderno é meticulosamente encapado e enfeitado por bichinhos de papel de presente. Minha mãe os cortou e arrumou um por um. A professora, que chamamos de tia, começa a ensinar as letras e tão logo chega a hora do lanche. Então guardamos nosso material. Entoamos a canção que diz "Meu lanchinho, meu lanchinho, vou comer, vou comer! Pra ficar fortinho, pra ficar fortinho, e crescer! E crescer!" Um dos meus coleguinhas faz a oração. Na hora de distribuir as lancheiras, a professora faz uma piada com a minha. Não entendo muito bem, fico caladinha. Dentro dela, eu sei, mesmo com pouca idade, tem bastante amor em forma de suco, uma maçã e biscoitos redondinhos salpicados com pequenos cubos de sal. São os meus preferidos. Minha garrafinha é aberta. A tampa dela cheira tangerina. Isso! Meio que uma mistura de suco e sobras que ficam na borda. É doce. Enquanto eu bebo o suco e apoio a outra mãozinha em minha toalha cujo meu nome vem bordado, a imagem da recordação vai ficando menos nítida, embaça e some. Recobro à realidade. Vejo o líquido laranja balançar dentro do copo. Estou inteira. Mais um motivo para amar essa mulher que agora está enchendo a máquina de roupas e me olha com expressão engraçada:
- Volta pra terra, gordinha. Tá viajando por onde? Parece que tá em Marte! - morre de rir. E continua - sai dessa mesa! Já comeu demais. Vai varrer a casa, anda! Para de sonhar acordada e vive! - Um tal jeito humano de exteriorizar Deus no olhar, nos gestos, uma forma humorada, mas carinhosa, de cuidar. Levanto e saio imaginando a minha sorte de ter como pais quem eu tenho.
(...)
Continua.
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